terça-feira, outubro 10, 2006

Um Fio (Quase) Invisível


Mais uma viagem para a outra (esta) margem, mais um dia sem te ver. Entro no cavalo metálico que faz a carreira até ao meu castelo (parece-me que já de olhos fechados) e imagino o dia em que estarás nesta (outra) margem à minha espera, no alto da nossa torre, a acenar-me, sorridente, com o cabelo ao vento.
Pego na sacola e reparo no fio negro que me acaricia o pulso - um fio (quase) invisível, moldado por dedos pequeninos, guiados por olhos grandes e um coração imenso. Escolheste-o com cuidado, por entre uma floresta impenetrável de cabelos com reflexos cor de noite, e com a graciosidade das princesas dos contos de fadas, pegaste-me na mão e ofereceste-me parte de ti. Com dedos pequeninos e um coração imenso, sorriste com os teus olhos grandes e disseste "Já está!".
E assim, apesar de (ainda) não termos uma torre só para nós, durmo todas as noites feliz no meu castelo, contigo enroscadinha no meu corpo...

sexta-feira, agosto 25, 2006

AC/DC

Desde há alguns dias que tenho ar condicionado em casa. É porreiro, agora posso usar os meus halteres a qualquer hora do dia, sem correr o risco de ficar encharcado em suor. Também posso dormir vestido, e até tapar-me com um lençol, sem medo do síndrome da morte-súbita-por-asfixiamento-calorífico. Aliás, isto é tão bom que já estou a pensar em mudar-me para uma cidade onde faça realmente calor, como Évora, Beja ou Marraquexe, para poder usufruir em pleno do microclima digital. Depois, a partir de Outubro, faço as malas directo a Castelo Branco, à Covilhã ou ao Árctico, feliz por poder atafulhá-las apenas com calções, t-shirts e tangas-tigreza para as noites mais quentes. É nestes momentos que me apercebo verdadeiramente da evolução da espécie humana: ainda há uns anitos andávamos todos (também) vestidos com tangas-tigreza (neste caso com prejuízo obrigatório para alguns tigres - foi nesta altura que se formou a P.E.T.A.), a calcorrear o globo inteiro, sem mapas nem bússola, na eterna procura da Temperatura Amena, aquela que não estraga as alfaces e não apodrece os figos. Iniciou-se, aqui, o conceito de campismo moderno, o qual tem subjacente 3 critérios fundamentais: a) montar e desmontar o acampamento de 5 em 5 dias; b) não tomar banho por períodos prolongados de tempo; e c) adubar o mato esfincterianamente.
Hoje em dia é ao contrário: as tangas-tigreza são de algodão ou látex e estão guardadas na mala para ocasiões especiais, e as migrações sazonais são feitas em busca da Temperatura Extrema - Brasil, Egipto, Sierra Nevada, Pólo Norte -, já que milhares de séculos de aperfeiçoamento científico permitiram criar o Ar Condicionado, possibilitando, assim, às pessoas desfrutarem no exterior as Temperaturas Extremas, com a confiança de quem sabe que, em casa, os figos continuam maduros e as alfaces frescas. É por isso que alguns andam de cabeça levantada na rua enquanto outros fitam, cabisbaixos, o chão. Isso ou reumático.

domingo, julho 23, 2006

Alquimia

Na quietude da meia-noite conversamos com o olhar. Esquivo, ardente, ansioso, sincero. Oiço a tua voz na minha cabeça, perguntando-me se conseguirás escutar os meus pensamentos na tua. O silêncio torna-se som. E com um simples movimento, tudo deixa de existir, excepto nós. Já não tenho que acordar às 7h, amanhã...
Pego na caixa - "Parece pêssego, vês?" - e sorrio. Está ali o bater do teu coração. Ainda bem que resolveste entregar-mo em mão e não através da janela.
"Vamos ao sítio dos namorados?..." Todas as cidades têm um, mas este é o meu preferido: podemos caminhar pela estrada deserta, descer montes, subir uma montanha, descalçarmo-nos na relva, escutar o rio ou contar as estrelas. É fácil fazer tudo o resto desaparecer, num local assim. Tal como é fácil transformares todas as situações em momentos mágicos, quando sorris. "Nunca te contei?" Não, nunca me tinhas dito que eras alquimista; mas calculo que sempre o soube...

quinta-feira, junho 01, 2006

Amor de mãe

Tic, tac, o relógio
Na cabeça da mamã
Toc, toc, o soalho
Sob os passos do bebé
Corre no sótão da memória, entre arcas e baús
Repletos de angústias e fantasias que, lentamente, ganham vida
Tic, tac, o relógio
Na parede da cozinha
Marca o tempo e marca o passo, até tocar a campainha
A cumplicidade desapareceu, extinguiu-se com o último fôlego da criança
(Como é que um ser tão pequeno pôde soprar com tanta força?)
Num crescendo de tormentos que naufragaram, subitamente, no silêncio absoluto de quatro paredes

É preciso esvaziar as arcas

Toc, toc, o bebé
Diz à mãe que quer sair
Chora e grita e ralha e berra e acorda o pai que está a dormir
Golpeia-o violentamente e encharca-o em suor carmim
Pela mão da sua mãe, que só quer o melhor para si

Tic, tac, o relógio
Na cabeça da mamã
O futuro é risonho agora
Que é só ela e o seu bebé

terça-feira, maio 02, 2006

Hundertwasser?

Quero deixar aqui, hoje, um agradecimento sentido à vaga de calor que assola actualmente o nosso país, sem a qual não seria possível voltar a ver mini-saias e tops que nos fazem desejar ter novamente dois meses de idade.
Com o calor, vieram também as cores garridas, qual liquidação total da benetton que pintalgou corpos e cidades e jardins e objectos de verdes alegres, vermelhos vivos e azuis sonhadores. Os sorrisos despontam mais facilmente, as pessoas são mais afáveis, as palavras saem mais agradáveis e musicais...
De facto, tenho vindo a aperceber-me que as palavras (como tudo o resto) têm cores e odores e até sabores característicos, sendo que a simples recordação de algumas me causa cãimbras no cérebro, enquanto a pronúncia de outras se revela tão saborosa como morangos embebidos em vinho do porto.
Às vezes dou por mim a apreciar, no meio de uma conversa, determinadas palavras e o modo como elas expressam, de forma tão perfeita, os pensamentos e emoções de cada um. E é sempre engraçado reparar como diferentes palavras podem transmitir os mesmos sentimentos, do mesmo modo que a mesma ideia, traduzida em palavras diferentes, pode provocar um sorriso ou levar às lagrimas. Deve ser por isso que gostamos mais de falar com certas pessoas do que com outras - algumas palavras soam e cheiram e sabem melhor do que outras, e nem toda a gente consegue, na mesma frase, ressoar como as ondas do mar, exalar o perfume de uma pele de bebé e deixar-nos na boca o travo doce e suave de um pêssego maduro. Tal como existem pessoas que não aproveitam a variedade cromática das palavras e falam sempre em tons de cinzento ou azul ou vermelho, tornando-se tão aborrecidas que acabam geralmente a falar para o boneco.
Eu, por mim, gosto de pensar que consigo variar um bocadinho e que palavras como "catita", "nostalgia" e "Hundertwasser" não causam cãimbras cerebrais nos meus ouvintes...

quinta-feira, março 16, 2006

Braceletes

Quando os dias engolem as noites, as horas param, cansadas de correr, e refugiam-se debaixo da água que escorre, quente, do chuveiro.
Tiram o pó entranhado nos ponteiros dos segundos e ensaboam as porcas e os parafusos, para os dias continuarem a correr certos como um relógio suiço: sem Falhas e sem Pausas.
(apenas um Erro, aqui ou ali, mas dá-se corda e já está)
As horas embrulham-se no algodão macio e dançam ao som de saxofones e tambores, experimentam sabores e odores e sonham com dias sem Regras, antes de fazerem tiC-tAc outra vez.
Mas quando as noites engolem os dias e os ponteiros deixam de gemer, pode-se fumar e beber, acelerar sem ninguém ver, gastar dinheiro à toa e rir, sobre tudo e sobre nada.
Porque mesmo os relógios suiços gostam de sentir no corpo o Prazer de trocar de bracelete.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A mochila da alegria

Na semana dos meus 27 anos, tive a melhor prenda que me podiam ter dado. Não foi o 1/2 litro de perfume da Hugo Boss (preparem-se, mulheres!), nem a camisola azul que não me servia (a minha mãe bem diz que tenho que engordar), nem o cheque da Fnac que ainda há-de chegar (e já tem Arctic Monkeys escrito na parte de trás). No entanto, e apesar de ter gostado das prendas materiais - no caso da camisola, gostei da intenção -, o mês de Fevereiro de 2006 vai ficar marcado não por objectos, mas pelas recordações da visita de médico de dois dias à Invicta só (só?!) para ver Bauhaus.
As 8 horas a abanar no comboio e a ver lá fora todas as tabuletas de todas as terrinhas e todas aldeolas, porque a função pública não chega para pagar o Alfa-Pendular;
A senhora cega que nos vendeu os pré-comprados no quiosque à saída da Campanhã, que fez os trocos impecavelmente na sua escuridão da 1 da tarde e a quem perguntei "O que é que há por aqui giro para ver?";
O motorista do 207, que se virou para trás no meio da viagem a berrar "Onde é q'está o senhôre que bai para o Coliseue?";
O nosso quarto, com janelas redondas de onde quase se podia tocar no S e no E que, misturados com mais 5 neons, marcaram o ponto de encontro daquela noite;
Os olhos e o sorriso da rapariga da recepção;
Os colares de cleópatra e as respectivas Nefertitis;
Os doces turcos vindos da Turquia e que afinal se vendem ao pé do Lux;
A francesinha enfiada à pressa antes das 21.30 e que durou a noite inteira;
Um tipo sul-africano maluco que se juntou a nós mesmo a tempo do concerto e passou a fazer parte do grupo;
A Música, as máscaras, o cabedal e a ganga preta, a voz, aquela Voz vinda de um Céu que não é o da Biblia, a corda pendurada da parede, os ritmos diabólicos e densos de um Inferno bem real, os colares com espigões de ferro de 10 centímetros (bastante úteis contra tentativas de estrangulamento), uma multidão de (in)fiéis a cantar em uníssono todas as passagens de um Livro já antigo, a descoberta de que um dos roadies era espanhol, como nós;
O vinho tinto alentejano de 2002 e o caldo verde com broa do Capa Negra;
As horas no Swing, sem troca de pares mas com perda de fluidos ao som de Sisters of Mercy, Bauahus, Cure e NIN;
Mais colares de picos;
As viagens de 5 kilómetros a pé às 5 da manhã;
O pequeno-almoço no quarto sem pagar mais por isso (foi preciso ir ao Porto para comer croissants na cama!);
As fotografias malucas;
O banho de água fria, o atraso a sair do quarto e a cara de poucos amigos da rapariga da recepção;
A escolha da pulseira debaixo de um dilúvio instantâneo, antes do restaurante italiano e de um "oops!.." envergonhado;
O stress dos transportes para voltar, o tic-tac do relógio debaixo de outro dilúvio instantâneo e o taxista que saiu da farmácia, mesmo ali à nossa frente;
E a sensação de estar de férias e ter outra vez 18 anos, mesmo que só por um dia, com a mochila às costas e uma vontade incrível de aproveitar cada segundo daquelas horas.
É verdade, esta foi a melhor prenda que recebi nos meus 27 anos - perceber que a vida continua a ser excitante e imprevisível. Obrigado, Nefertitis e Marcus com U. Nem foi preciso embrulhar...